sábado, novembro 15, 2003

É velho, mas tava relendo e dei uma mexida...

Eu não deveria estar falando nada, eu sei. O chão está tremendo, quase cai da cadeira na tentativa de apanhar minha mochila no chão, minha voz está enrolada, meu hálito não presta mais, mas eu preciso dizer que te odeio.

-Até ai, nada de novo, minha querida. Quantas vezes vc já disse isso?

Mas é diferente, a cada hora a concepção é nova. Não, não... eu não pensaria em algo tão complexo, está mais para indecisão ou inconsistência. E sempre a maldita inconsistência.
Já estou digredindo de novo, estou bêbada, eu sei, mas preciso falar. Vc me perdoa? o máximo que nos pode acontecer é pararmos numa cama de motel ou quem sabe ainda, num banco fétido na cidade de Curitiba.

- E por que curitiba?

Eu sei, nunca fui boa com as metáforas, mas ainda sei descrever coisas como ninguém. A sua cara quando me viu entrar com aquele rapaz, por exemplo, daria um ótima dissertação. Mas dissertações e garotos não significam nada para mim no momento.
Me vi escrita em um livro ontem. Mas não era eu na verdade, era aquela outra menina esquecida. Me diz: por que vc foi esquecê-la justo agora? Foi para me deixar ainda mais consciente de que sou eu o problema?
Desculpe. Vou parar antes que eu me odeie mais do que eu te odeio. Ops...

"Eu odeio.
Só o Egon Schiele me entende. Quem ele era? Sei muito pouco, mas agora sou uma das garotas dele: pálida, os músculos contraídos por uma dor cheia de ódio, os olhos vivos dessa mesma dor, a cabeça doendo de tanto franzir a testa.
Não me venham com risinhos! Meus punhos se fariam fortes, e eu teria um soco inglês na mão direita, meu corpo inteiro disposto (ansioso! Sedento!) a deixar o silêncio, a desistir dos argumentos irrefutáveis calados.
Ah, o Peter Pan me entende! Por isso eu poupo seus dentes de leite. E ele seria meu amante, como a Pequena Sereia foi do Fausto, e eu seria feliz de um jeito idiota, enquanto o tempo corroeria aqueles dentes permanentes risonhos sujos que me atormentam. E em algum momento eu estaria grávida daquele sujeito impúbere, e em algum momento depois eu saberia que o suposto filho era um tumor imenso. Meu corpo se inflamaria, começando pelo útero, sempre por ele. Então eu voltaria e vocês me encheriam de morfina, e meus olhos perdidos estariam cheios do amor que me mata, mas vocês só perceberiam a droga que os embaçava. Então eu morreria, que nem a Pequena Sereia. Muda, que nem ela. Ela me entende, a idiota, ela e seu silêncio, e sua vida e seu palácio e seu jardim perdidos em troca de três dias inúteis, os pés doendo como se pisassem facas de dois gumes, os olhos latejando de tão vivos e de tanto amor, e ninguém prestando atenção.
Eu morreria de amor."