sexta-feira, outubro 17, 2003

Voltei de viagem muito melancólica. Ia escrever coisas do tipo 'é incrivel ter que viajar com um monte de gente para perceber o quanto me sinto sozinha' ou então 'pare o mundo que eu quero descer' ou ainda 'nada me deixa em estado tão contemplativo quanto uma boa ressaca'. Ia escrever outros tantos clichês, mas resolvi ler um pouco antes de postar no blog. E a literatura sempre faz isso comigo... já tentei dissertar sobre o tema aqui mais de uma vez e certamente não será hoje que me empenharei de verdade. Mas o fato é que a auto-piedade se transforma em glamour e a melancolia torna-se deveras produtiva.

Ao invés de um texto bobinho que eu escrevi sem muitas pretensões, deixo aqui algo que eu gostei muito de ler enquanto criava vontade para atualizar meu blog.

www.escambau.blogspot.com

Felicidade dá medo
E eu ligo para ela e digo que vou sair mais cedo do serviço, e que ela se prepare porque vou comê-la muito, ela ri e diz que está com medo e vai se trancar no banheiro, e eu saio, corro pela manhã de primavera, passo na padaria e compro suspiros, porque estou sem grana e dá para conseguir muitos suspiros cem gramas a um real. Chego em casa, ela estende roupa molhada no varal, e eu a agarro na área de serviço e a levo até o quarto, ela ri o tempo todo, se fazendo de difícil, e meia hora depois estamos desmaiados pelados um no braço do outro, e eu me levanto e volto da cozinha com café fresco, forte e doce, o pão com manteiga que ela adora, pão com presunto, bolacha salgada com requeijão e os meus suspiros. Ela acorda sorridente e animada, e diz que quanto melhor é, mais fome dá, e que ela está morrendo de fome. A gente come e se veste, e ela volta ao tanquinho e eu vou buscar a menina de quatro anos na escola. A menina gosta quando sou eu que apareço para levá-la, e pula sobre mim, eu viro o seu tobogã, e ela dá beijinho na professora que a adora, e canta uma música sobre a primavera que aprendeu hoje, e mostra o livro que ganhou da escola, a galinha dos ovos de ouro, e eu prometo que vou ler antes dela dormir. Chegamos em casa e como todos os dias ela se esconde atrás de mim e pede "diz para mamãe que eu não vim" e a mamãe "cadê nossa filha?" e eu "ela não veio" e ela "ah, não veio, por quê?" até que a coisinha atrás de mim grita um bu! e a gente finge se assustar e a pequenininha é só beijo e dentes e abraços e pede leite, quero leite, cadê minha bicicleta, viva a maria, repetindo um trecho do menino maluquinho que ela adora. E eu preparo a mamadeira quente que ela faz evaporar como um bezerrinho, e coloco Nirvana e Elvis para lavarem a louça junto comigo. E a música toca, e a menina abandona um pouco os Teletubbies e o Pequeno Urso e vai até a arquibancada da cozinha dançar comigo sliver e smells like teen spirit e heartbreak hotel e his latest flame e hound dog e in-the-ghetto-a-música-que-a-mamãe-gosta. E tudo é tão bom que parece o cenário idílico das primeiras cenas de um filme catástrofe. E a felicidade me apavora, me faz pensar em contrapreparação dramática, me lembra que nada bom foi feito para durar, que toda alegria nasce com tempo limitado de duração como os replicantes de blade runner. E quando ela sai para levar a menina de oito anos para a outra escola, para de lá ir ao seu curso de teatro, brilhar, estrela minha, no seu palco, e antes de sair ela me beija e a gente se abraça e eu me sinto de novo feliz demais e eu não queria ser tão feliz, nunca procurei por isso, sempre fui um melancólico, deprimido e pessimista, e não quero nada disso porque felicidade vicia e eu tenho medo de não saber viver sem ela quando um dia terminar, o amor não dura, meus pais não dormem mais no mesmo quarto, ninguém nessa porra de mundo é feliz de verdade, por que eu? E vem a paranóia e eu sinto que alguma merda vai que acontecer para acabar com tudo isso e peço para ela tomar cuidado para atravessar a rua, e a beijo e abraço com todas as línguas e os braços de uma última vez. E ela sai alegre e logo eu já estou alegre de novo, e sou um gigante que a menina de quatro anos comanda no seu passeio pela casa, suas perninhas sobre o meu pescoço. E deito na cama e enquanto leio Fante ela pega na última gaveta do guarda-roupa a sua pequena biblioteca, feita de grinch menino maluquinho tonho o elefante sítio do picapau kid grafisco e se mistura às ilustrações e eu me vejo ali naquela leitora voraz que ainda não sabe ler e volto a me emocionar, é a terceira vez hoje, felicidade deve deixar a gente boiola, de querer chorar ao ver o sorriso da filha a sair por aí dando o rabo é um passo. E deitado na cama eu leio Fante e pela segunda vez Camilla e o collie desaparecem no deserto e fico triste e quando a menina de quatro anos vem de novo para perto de mim o seu sorriso me lembra os cantos escuros e as sujeiras e a solidão e as tristezas sem remédio que a sua vida vai encontrar sem que eu possa fazer nada, e passo a mão por suas maria chiquinhas e sinto a cabecinha embaixo do cabelo ralo, e me vejo nos dois olhões pretos dela enquanto digo "quero que você seja feliz, sabia?". Ela, que é uma tagarela que não pára de falar, de repente percebe que eu disse algo de importante, pelo menos para mim, e fica quietinha e se coloca embaixo da minha mão, como de uma asa, e me beija e eu me esqueço de pensar e durmo até a noite.
Por Fausto

Que manifeste-se aquele que conseguiu ler o texto inteiro sem esboçar ao menos um meio sorriso.