sábado, julho 26, 2003

No mais profundo de ti (crônica do amor cruel)
por MORA FUENTES

Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses,
Aqueço-me trêmulo,
A outro sol do que este.
FERNANDO PESSOA
( Odes de Ricardo Reis )


Pequena cadela que tu és, mil vezes te mataria se estivesse em mim, ainda, poder tão absoluto sobre ti.

No entanto sobrevivo meus dias nessa ausência de sangue, rodeando inúteis escapulários porque não é a mim que desejo defender. Nada em mim implora proteção clemência, inúteis que sei agora e para sempre os dias de calma. Antes, um pernoitar de fogo me movimenta as noites, sorriso de trama, pérfida urdidura. Tal é o logro feliz que te preparo.

Evoluo assim, saciado, as minhas horas. Te vejo e revejo factível, moldável, perecível, imaginando-te exausta num pedaço enorme de deserto (minha vida talvez, agora que te não tenho) e eu o senhor das águas, e não não não, não seria clemente. Mentiria dizendo Ali, olha ali ------- e ali nada. O poço em outra direção, tão distante de ti e mesmo de tudo, que nem se por momento aquoso meu torpe coração se comovesse, perdido nessa guerra em que sempre fui vencido, me venceste, nem assim te salvarias. Impossível, para mim, te ofertar dádiva de águas.

Sucumbirias, pequena lontra, num estertor de seca e estupidez, enquanto impassível, austero, sem culpa, absorvo feliz tua agonia. Primeiro, porque a merecestes. Segundo, por não haver em mim nenhuma possibilidade, morto eu também pela distância da vida.

Morrerias insaciada, numa lentidão de areias e de ventos. E eu perene, isento de leis, governador do mundo.

Também te imagino entre lobos, e apenas numa memória minha o nome antigo deles todos (nome sonhado em vigílias de lua, uivo de cada um que trago dentro do peito). Sei que estás lá, com eles. Répteis e serpentes completando círculos. E enquanto eu, distante, penso outros mundos, perdido no que perdi te amando, tu, perversa, vais sendo tatuada por dentes patas pelos e línguas.

Inócuo, aperto entre as mãos a chave que te soltaria desse território maligno. Comigo em mim tua única saída. Apenas eu te salvaria, se me lembrasse disso.

Mas indolente, modorra de todas as tardes aplicadas a este dia, por mais caminhe meu passo sei que nunca me aproximaria de ti, de onde estás, acre serpente, animal maldito, ódio do meu ventre, corpo conspurcado de mim, porque tanto te amei que agora te desejo morte, mil vezes ausente da vida por tua culpa, mil vezes distante de mim, embora resoluto.

Mares entre nós, abismo de Tempos.

Mas é aí, nessa imensidão de perdas, que inicio, carrasco, estratégias, planificações, batalhas, em que a derradeira perene vitória seria possuir tua vida um minuto antes, um minuto antes que se extinguisse.

Tudo se fez tão abismoso que só te percebo assim, despudorada e maldita, verme de um amor, peçonhenta e rapinosa.

Me vejo assim também. E subjugado, torpe, crepúsculo de um dia. Enfurecido percebo que nada em mim pode ser peçonha, distância tão grande dessa vida que em tudo te protege.

Com outro, corrompes novos mundos. Constróis impérios onde sou nada. Decepas lobos, caminhas.

Minúsculo, não percebido, rarefeito, percorro submisso teu horizonte onde reina esse novo outro (eu mesmo esquecido, que é quem procuras), sabendo de ti por sorver o hálito de um mundo e por te imaginar nele, soberba e soberana, crudelíssima víbora porque me excluíste, pecaminosa em tudo porque me esqueceste.

(...)

(Fragmento)
No mais profundo de ti (crônica do amor cruel)