quinta-feira, maio 15, 2003


Trecho de um conto de um livro muito legal.
Ele começa com uma das melhores frases de Hilda Hilst: "o olhar dos animais é uma pergunta morta"

missal para rastejantes
daniel pellizzari

"... meu sangue do dedo pingou pela pia. medo de matar formigas. acerto uma só, grandona. no meio das baratas. umas lacraias passam ondeando. tão delicadas. a formiga sai. viva. pego de novo a faca. Um pouco de sangue na lâmina. Pode ter mais. Eu desexistir. De saco cheio Deus. Fiquei esperando todo esse tempo e ele foi embora Deus. Ele sempre disse que eu era a Mulher mas que ainda não era a hora deus. Todo tipo de bicho pela cozinha. Umas mariposas no meu cabelo. Enrolam nos cachos. Encosta a faca no pulso. Tenho medo. Acho que sempre fui meio idiota deus. Com que intenção a gente foi cair aqui assim Deus hein me diz. O que leva a gente a acreditar em coisas Deus hein me diz. Enfio a mão na gaveta cheia de baratas formigas lacraias lesmas cupins besouros gafanhotos aranhas centopéias minhocas vermes minha vida Deus. O ruído da faca vem em três agoras: depois pára, deitada seca. Enfio a outra mão, fecho uma concha. Puxo o ar bem fundo boca aberta sai um barulho bem no fundo meio chiado. Faço um bico e sopro a vida pra fora. Se é assim é assim que vai ser. Enfio na boca os bichos todos. Mastigo bem. Crocante. Chupo os sucos até o final. Um travo na boca. Engulo a pasta. Com a língua tiro os restos de pata e casca dos meus dentes. Ninguém vai me enganar agora, deus. Não consigo nem lembrar a cara dele que eu esperei, deus. A ausência que quando chegou me levou para longe. Nunca foi meu, deus. Nunca fui nada. Mas minha decisão eu já tomei. Não vou fazer o que vocês querem, deus. Ninguém vai mijar em mim. Ninguém vai dizer que me comeu. não vou ser toco. Que se fodam. Não vou. Chuto a faca. Bate na parede, treme e fica de novo imóvel. Coisas estão sempre mortas, deus. A gente faz o que quer com elas e tudo bem. As coisas estão ai para isso mesmo. Mas não eu. Eu sou outra que não coisa, deus. Acho que descobri o que sou. Pra quê eu sirvo. O que tenho que fazer. Se é assim que tem que ser então é fim de trato. Enfio as mãos mais uma vez e mastigo os resto dos bichos. Não vejo mais uma formiga sequer. Hans quieto para sempre. Eu de boca cheia. Esta morte nem tem gosto. Mas é a vida que você nos oferece, deus. É o que você me deixou, meu amor. Muito obrigada. Caminho até a sala e abro uma das janelas. Agora que o fim chegou eu posso começar a cuidar de viver.

Este conto não tem letras maiúsculas no começo das frases, mas meu word insiste em corrigir automaticamente.
Sim, alguns “deus” são com letras minúsculas e outros com maiúsculas.

É assim que eu me sinto (com ampla capacidade de abstração)